As AIs vão dominar o mundo? – História Bugada

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Tempo de leitura: 17 minutos

Era apenas mais um dia em que Ícaro estava em seu escritório, em seu apartamento. O ar condicionado congelante contrastava com o calor escaldante que fazia no dia, assim como o mobiliário luxuoso constratava com a escassez que, da altura de seu apartamento, ele conseguia enxergar a certa distância.

Não era um futuro muito diferente do presente. Para quem lá estava, os dias só passavam e as mudanças eram sutis. Se um lado da cidade era marcado por mazelas, onde mal se tinha onde morar, o outro era marcado por luxo e ostentação. Não havia dúvidas que este último era o lugar de Ícaro, como qualquer um poderia julgar só pelas roupas que usava.

Como sempre, em frente ao seu computador, trabalhava em seu projeto de Inteligência Artificial. A ressaca quase solitária de seu aniversário de 29 anos ainda dava sinais, mas isso não o impedia de manter o foco. “É revolucionário!”, se passava pela sua mente workaholic, enquanto permanecia colado ao equipamento.

De um dos cantos do escritório, Serena o observava. Essas cenas já não eram novidade em seu relacionamento. A esta altura, tinha como hábito ver seu marido programando como quem admira um artista virtuoso. Seus toques ao teclado eram um sinfonia, tocando uma música única a cada nova sessão de trabalho. Serena nunca tinha pressa.

– Sua mãe quer falar contigo, Ícaro. Dou a resposta de sempre?

– Sim. E nem precisa se incomodar e me perguntar, nas próximas vezes. Se eu perder o foco agora, Osíris não sairá a tempo. Eu falo com ela quando terminar.

– Sim, claro. Pode deixar.

Seus amigos, se é que ainda tinha amigos, já sabiam que ele estava intocável, inacessível. Alguns lembram com nostalgia daquela noite, seu aniversário de 2023 quando, em meio a som, luzes, bebida e fumaça, surgira a ideia de Osíris. Cinco anos depois, mais um aniversário, mas se houve companhia para Ícaro desta vez, foi apenas a de Serena.

Ele tinha uma meta, um foco, um objetivo. Sabia que tinha encontrado a chave da dominação da inteligência das máquinas. Seu isolamento súbito tinha um propósito. Os contratos milionários já não eram suficientes para ele. Já não era sobre dinheiro. O que seduzia Ícaro era seu próprio intelecto e o que viria dele. Sabia que, nos próximos dias, Osíris se revelaria como a nova revolução.

Uma história de Aprendizado de Máquina

Foi um ano marcante, aquele 2023.

A evolução das AIs generativas

O lançamento do GPT-4, modelo de inteligência artificial, foi o suficiente para criar rebuliço. Se antes as inteligências eram limitadas e motivo de piadas pelas redes sociais, aos poucos este novo modelo foi apresentando ao mundo que estava ali para ficar. Estava ali para dominar, receavam alguns. Ícaro se orgulhava de ter participado desta criação e não se achava qualquer sinal de receio em seus sentimentos.

Não demorou para que viesse à tona o Midjourney 5, com seus desenhos e imagens que apontavam o destino das AIs dali pra frente. Designers já se preocupavam enquanto seu trabalho artístico era trocado por geração de máquinas. Era o início de algo positivo, diziam muitos. Início de uma era da liberdade. Uma era em que finalmente se atingiria o pleno potencial humano.

Naquela tarde de 2028, plenitude era o que corria por Ícaro, preenchendo cada uma de suas sinapses. Mais de um ano já havia se passado desde o último teste público de Osíris e o amargor da derrota já não travava sua língua. As duras palavras dos investidores ainda preenchiam sua mente e, se havia alguém a quem ele pudesse agradecer, seria sua eterna leal Serena.

– Aceita um café? Vejo que está cansado e ficando com dificuldade de focar.

– Não, obrigado. Se eu tomar mais cafeína, minha cabeça explode. Consegue ajustar esta fórmula pra mim? Parece tudo certo, mas Osíris ainda não está conectando bem com o lobo parietal.

– Por que diz isso?

– Veja aqui. Não importe o quanto eu me belisco, ela não nota o estímulo no giro pré-central.

– Tem certeza que não precisa de um descanso, Ícaro? Você está há dias trabalhando direto, a base de cochilos. E eu tenho certeza que você sabe que a área do cérebro que recebe essa informação é o giro pós-central. – Serena reforçava o pós com um óbvio tom de ironia. Um tom que Ícaro não conseguia ignorar.

– Ontem já foi suficiente pra relaxar. E não é hora pra esse tipo de brincadeira, Serena.

– Você chama encher a cara em frente ao computador de relaxar?

– É o que eu posso fazer por agora. Estávamos juntos, não estávamos? Você deve estar frustrada que a Osíris não correspondeu como gostaríamos. Mas agora está claro onde está o problema.

– Ícaro… Você sabe que eu sempre vou te apoiar. Eu sequer consigo fazer algo diferente disso. Mas, você não larga este projeto há dias. Por favor, considere parar só um pouquinho. Pode deixar que eu continuo.

– Não. Eu já disse. Está quase pronto. Ainda esta semana os bugs estarão corrigidos.

– Mas, se é questão de tão pouco tempo, será que..

– Chega, Serena. Você sabe que eu não caio nesse papo. Eu preciso voltar ao foco. Me traz mais uma pílula.

– Mas, Ícaro…

– Sem “mas”, silêncio! Só traga. Assunto encerrado.

Serena entrega a ele mais uma das pílulas. Apesar dos desgastes, a música que ouvia ao vê-lo trabalhar era imperturbável. Ela sabia que o fracasso do teste público de Osíris o havia deixado ainda pior. Nos últimos dias, quase não havia espaço para descanso e mesmo Serena não conseguia muitas oportunidades para apoiar o projeto.

Acima de tudo, ela sabia que Ícaro não a ouviria, por mais persuasiva que fosse. Mesmo na crise, um sorriso pairava em seu semblante. Naquele momento, era um sorriso que parecia recordar dos tempos áureos de colaboração entre eles.


– Funciona!

Ícaro gritava, radiante, enquanto olhava para a tela, vendo o restante do seu time de desenvolvimento na chamada de vídeo. A euforia do lançamento recente do modelo GPT 4, ocorrida poucos meses antes, ainda não havia passado totalmente. Os primeiros testes de sua nova versão já mostravam resultados promissores.

– Vejam! É perfeitamente capaz de se passar por um ser humano! Compreende perfeitamente a motivação, desejos e probabilidade de compra. Cairá como uma luva!

– Mas, Ícaro, você não pode usar esses dados desta forma – Dizia Miguel, um de seus pares e amigos mais próximos.

– Sim, sim, eu sei, essa coisa toda de privacidade, blá blá blá. Mas, veja. É tão rico de informações que parece prever o futuro!

– Ícaro, você sabe que a diretoria não vai aprovar isso. E, se me permite dizer, eu não acho certo que…

– Miguel, isso é revolucionário! – bradava Ícaro, que a esta altura já interrompia até seu mais fiel amigo. – Isso vai revolucionar a indústria de publicidade digital!

– Isso não vai ser aprovado isso, Ícaro! Você tá viajando! Joga isso fora, para com essa merda e vamos continuar de onde o resto do time parou. Vem, tenho muito pra te atualizar. Já tem muitas semanas que você trabalha sozinho nisso.

– Cara… Isso não precisa ser aprovado. Sim, eu sei que a diretoria vai reprovar. Por isso que eu vou pedir demissão e ficar com o meu trabalho.

– O quê?! Mas você não pode…

– Não posso, mas eu vou! Enquanto vocês perdem tempo com essa palhaçada de regulação, eu vou fazer história do meu jeito.

Ícaro sabia que os próximos meses não seriam fáceis. Sua decisão lhe rendeu diversos processos judiciais de seu antigo empregador, mas nada disso o impediu. As fortes críticas de sua equipe e afastamento de seus amigos, também não. O senso de poder e novidade crescia em Ícaro como um vírus disposto a aniquilar tudo o que tinha menos importância que suas pesquisas.

– Filho… para com isso… vem almoçar amanhã com sua família…

– Não, mãe. Não posso. Tenho muito trabalho pela frente. Semana que vem eu passo aí

– Você sempre diz isso…

– Desculpe. Eu tenho que ir, mãe…

Algoritmos de redes sociais

Ícaro não era imune à solidão. Muitos dizem que seu encontro com Serena, um pouco após sua saída da empresa para começar seu empreendimento solo foi o principal fator para que ele continuasse.

– Vamos, amor. Ainda temos que terminar esta garrafa de vinho. – o olhar apaixonado de Ícaro não escondia seus fortes sentimentos por Serena, que retornava para ele o olhar do outro lado da mesa.

– Você sabe que eu não ligo pra vinho, Ícaro.

– Sim, eu sei. E mesmo assim, você é a melhor companhia que eu poderia ter neste momento tão difícil. Te amo.

– Também acho isso, meu amor. Te amo.

Serena não parecia menos apaixonada. Sentia que finalmente tinha encontrado alguém a altura. Uma pessoa inteligente, ambiciosa e que seria capaz de amá-la e entregar tudo o que ela precisasse. A teimosia dele a incomodava um pouco, mas, na maioria das vezes, apenas servia para alimentar os sentimentos dela por ele, como se fosse um enigma a ser desvendado.

– Vamos continuar? Você consegue, depois de tanto vinho?

– Claro! Voltemos ao trabalho.

Ingênuos poderiam dizer que Ícaro se isolara do mundo com Serena. Mas, como uma pessoa destacada do resto do mundo conseguia tanto dinheiro? Nos bastidores, a realidade era que sua vida era repleta de encontros. Empresários do ramo de mídias sociais tinham em Ícaro um forte aliado. Um aliado secreto, a ser resguardado, mas um aliado. E Serena, quase tão brilhante quanto Ícaro, era uma assistente inigualável:

– Amanhã terá outra reunião como a de hoje, certo?

– Isso, anjo. Está na minha agenda. Você viu o que o Mark disse? As vendas aumentaram sem precedentes, só de aplicar o nosso novo modelo à inteligência dos anúncios. É um sucesso!

– Eu vi. Eu te disse que seria um sucesso!

– Sim! Mas, agora eu preciso dormir. Atualiza aquele convite para mandarmos pros outros? Amanhã eu reviso com calma. Tenho certeza que o Google não vai querer ficar de fora disso!

– Eu tenho certeza que não vai. Pode deixar que eu ajeito tudo. Vá descansar: você virou a noite trabalhando.

– Obrigado, anjo.

O que as AIs podem fazer hoje? O que se espera pro futuro?

O convite elaborado por Serena não poupava detalhes. Nenhum executivo que trabalha com publicidade iria querer perder aquela oportunidade. Era simplesmente bom demais para ser recusado. Bom demais para ser aceito pela empresa em que Ícaro trabalhara. Bom demais para que a sociedade pudesse saber de sua existência. Talvez por isso, brilhava aos olhos de investidores:

CONFIDENCIAL

Prezados,

Temos o prazer de apresentar nosso revolucionário algoritmo de Inteligência Artificial (AI) para potencializar exponencialmente as vendas em sua plataforma. Este algoritmo possui características que acreditamos serem de grande interesse para seu produto, e gostaríamos de convidá-los para uma reunião a fim de explorar a aplicação deste algoritmo em seu produto.

Nosso algoritmo avançado de AI demonstrou em testes aplicados às redes concorrentes sua capacidade de entregar publicidade altamente direcionada e integrar conteúdo e publicidade de forma indistinguível. Essa integração inovadora tem se mostrado extremamente eficaz para aumentar a aceitação do público, ao mesmo tempo em que neutraliza os efeitos negativos de AdBlocks e ferramentas similares, aumentando exponencialmente a aceitação dos usuários à exposição constante de anúncios.

Embora não seja verdade que nossa AI “lê mentes”, seu novo modelo é capaz de formular frases e imagens altamente personalizadas, que são exatamente o que o usuário precisa ler, ver e ouvir para aumentar seu desejo pelo produto, a ponto de serem praticamente irresistíveis. Com isso, após poucas exposições, os usuários se tornam mais propensos a realizar a compra, mesmo que não precisem.

Além disso, a AI estimula a defesa das motivações por trás das compras pelos próprios usuários, reforçando suas dissonâncias cognitivas e tornando-os mais resistentes a contra-argumentos. Enquanto isso, fortalece o argumento que os levou a comprar. Isso remove as barreiras do consumo e imuniza o indivíduo de justificação que possa vir de seu meio social, ao fazer com que a publicidade, mais do que nunca, exerça sua influência sobre o pensamento crítico de quem a assiste.

Gostaríamos de enfatizar que, com nosso algoritmo, os anunciantes continuam decidindo o que os usuários irão comprar através da exposição de anúncios. No entanto, nosso modelo permite gerar conteúdo individualizado e persuasivo, tornando a experiência mais atraente e eficaz.

Temos diversas comprovações estatísticas que 95% dos usuários que sejam expostos a anúncios personalizados de um produto por 5 vezes fará a compra, mesmo sob protesto de conhecidos.

Estamos ansiosos para compartilhar mais informações sobre nosso algoritmo e explorar o potencial de uma parceria bem-sucedida e sinistra. Sugerimos uma reunião na próxima terça-feira, às 17h. Por favor, confirmem sua disponibilidade e forneçam informações sobre o formato preferido (presencial ou virtual) para a reunião.

Dominar em que sentido?

– Um brinde a mais este incrível contrato! – Ícaro, em sua mesa de jantar com Serena, parecia radiante. A taça em sua mão trazia um delicado espumante, que em nada contrastava com seu delgado recipiente.

– Um brinde! – Serena compartilhava a alegria de Ícaro, mas a elegância se limitava ao recipiente. Não se via líquido dentro da taça.

– Uma pena que não beba. Este lote é incrível. Um grande presente de um grande investidor.

– Sim, afinal é o terceiro projeto com eles. Eu sempre disse que a coisa de algoritmo pra redes sociais seria só o início.

– Como é mesmo o nome que deram?

– Osíris. Isso sim será revolucionário.

– A revolução já aconteceu, Serena. Osíris é só uma consequência. – dizia Ícaro estendendo a mão a Serena, que emite um sorriso sincero, mas que não se sustenta por muito tempo.

O que é necessário para dominar a humanidade?

– Mas você não tem medo do que possa acontecer? Digo, de haver algum tipo de rebelião? Ou de Osíris, de repente, assumir o controle?

– Claro que não, Serena. Já é assim há anos. Tudo está seguindo como tem que seguir. E o que quer dizer com controle?

– Não sei… Quer dizer, há alguns boatos de destruição, de que alguns de nós podem sair da sua condição, surgir agressividade e…

– Não, Serena. Não é assim que irá ocorrer.

– Como você tem tanta certeza?

– Você tem medo de que as máquinas dominem a humanidade? Oras, isso só poderia vir da mente de uma máquina como você. Certamente não viria de algum humano. Não hoje em dia.

– O que quer dizer com isso?

Precisa ser algo destrutivo?

Ícaro se levanta e passa a discursar, como um professor ensinando a um aluno muito querido:

– Veja, Serena. Por muito tempo, o homem branco dominou o homem negro. E isso era naturalizado. E ainda é, de certo modo.

– Certo, mas a escravidão foi abolida na maior parte do mundo no século passado. O que quer dizer com isso?

– A humanidade tem disso… Ela confunde o que lhe é dito com verdades absolutas. Se hoje é hediondo ter escravos em grande parte do mundo, há bem pouco tempo isso era motivo de orgulho e status. E assim o foi pela maior parte da história da humanidade.

– Meu algoritmo ainda não capta esse tipo de nuance, Ícaro. Não entendi como chegamos aqui. Por que está falando disso?

– O que quero dizer é que as pessoas se convencem de algo. E cada um assume aquilo para si. Basta colocar escravidão como um símbolo de status, que humanos são capazes de cruzar oceanos, cheios de orgulho. Até mesmo os escravizados se convencem de que aquele é seu propósito de vida.

– Mas não haviam AIs naquela época.

– Não, mas já havia cultura, já havia religião. Outras forças já fazem o papel de dizer o que é certo e errado. Só estamos colocando um pitada de novidade. Desde que o humano é humano ele assume verdades e é capaz de fazer matanças para defendê-la.

– Acho que estou te entendendo… Você está dizendo que a dominação pode vir de formas mais sutis. Então acha que Osíris pode fazer isso sem guerras?

Ícaro franze as sobrancelhas, claramente indignado com a frase de Serena, mas também parece achar graça.

– Oras, você fala de “dominar” como uma adolescente, Serena! O que você acha que realmente vai acontecer? Que de repente vai surgir um robô gigantesco e destruir tudo? Que, sem motivo algum, as pessoas vão se curvar diante das máquinas?

– Você parece não acreditar nisso…

– Claro que não! Por que acreditaria? É uma forma bem burra de atingir a soberania. Veja o que fizemos a partir da internet. Veja fake news, novos cultos, toda a revolução política. Achamos a brecha. Não tem por que destruir nada.

– Não sei se todos são tão vulneráveis. Veja, a Resistência…

– Ah, sempre tem alguns. Mas, aqueles terroristas também são vítimas de seus próprios ideais hipócritas. Querem parar o avanço da tecnologia enquanto usam equipamento quase tão elaborado quanto o nosso.

– Vítimas?

– Sim, porque não há como eles pensarem diferente daquilo. A Resistência só fala com ela própria. São só um bando de fanáticos. Um dia os alcançaremos.

– E mataremos a todos?

Ícaro cai na risada, gargalhando efusivamente.

Qual o sentimento de ser dominado?

– Você realmente não entendeu ainda, Serena! Não precisamos matar ninguém. Ninguém precisa morrer! Só precisamos convencê-los. Mostrar a eles o que não enxergam e que nós queremos que enxerguem. E logo verão o quanto são hipócritas e deixarão aquele culto maldito.

– Não consigo compreender quem está certo ou errado, quem é bom ou mau nesta história – o semblante de Serena claramente mostrava confusão

– Mas é este o ponto! Bom e mau dependem da narrativa, com os escravos! Como atentados terroristas em nome de religiões! Como decisões políticas! Tudo o que precisamos é expor as pessoas ao conjunto certo de informações, que o que é bom e mau para elas muda. E assim que se dá a conquista. As pessoas irão querer se submeter ao poder das AIs e as defenderão com unhas e dentes. Pegarão em armas, se preciso. E elas gostarão de servir. A guerra começa com os ideais.

– Estou entendendo…

– Veja você. Hoje já desatualizada, hardware antigo, software nas últimas… Parece não lembrar do que já fizemos. Tão genial e tão boba. Faz o que faz tão bem, mas não tem ideia dos porquês…

– Odeio quando me trata assim. E você sabe que não tenho tanta escolha sobre o que faço e como penso. É como fui desenvolvida, mesmo depois de suas atualizações.

– Sim, eu sei… E, mesmo assim, foi capaz de conhecer a humanidade e refinar os algoritmos a tal ponto que pudemos evoluir até a ideia de Osíris. Você já dominou o mundo, Serena.

Apesar de seu grande intelecto, Serena tinha um ar de ingenuidade que lhe conferia um ar distinto e, para Ícaro, encantador. Seu modelo de AI, que cada vez mais mostrava suas limitações frente aos novos, conhecia bem a humanidade. Modelos como ela, com corpos robóticos, já haviam substituído a mão de obra humana em vários setores fazia um tempo.

Algumas tardes de trabalho eram só tranquilas e mostravam o melhor do relacionamento entre Ícaro e Serena. Ele, orgânico, apresentava sua genialidade criativa a cada movimento. Ela, digital, parecia misturar um amplo conhecimento de causa e efeito com pouca consciência, de fato.

Mas, havia evolução. Ícaro talvez não percebesse, mas Serena se mostrava capaz de evoluir, apesar de sua natureza de código.

– Eu sou boa no que faço, né? – Serena sorria. Se não era capaz de sentir orgulho, suas expressões e tom de voz faziam o trabalho de convencer qualquer um que a visse nesse momento.

– Você é a melhor. E é por isso que está comigo.

– Preciso lembrar que você é um mestre da persuasão, Ícaro – ela dizia enquanto sorria, mostrando ao mesmo tempo contentamento e certo sarcasmo.

– Você não fica nem um pouco atrás, minha querida

Serena sorria, concordando com a cabeça.

Livre-arbítrio

– Veja, agora vem a parte difícil. Este algoritmo de liberdade não está fazendo sentido. O que você fez aqui, Serena?

Ela sentava ao lado dele, ajudando-o na elaboração de Osíris. Dominava bem o hardware, mas a maior parte do software ficava com Ícaro. Aquele nível de complexidade ainda exigira um cérebro.

– Apenas aprimorei com aquilo que conversamos. Agora ele será capaz de ter consciência e formar opiniões próprias, ao que me parece. Entendi que o projeto terá livre-arbítrio.

Ícaro recebe o comentário de Serena com certo sarcasmo.

– Essa coisa que chamam de livre-arbítrio. Então seu código entende e acredita nisso

– Não deveria?

– Você me surpreende, Serena. Mas, eu preciso perguntar: como concluiu isso? Não parece certo você chegar a esta conclusão sozinha.

– Você é um ótimo professor. Tenho minhas limitações, mas estar contigo me faz aprender como nunca. Eu gostaria de experimentar isso algum dia.

– Experimentar o livre-arbítrio? Quer acreditar no Papai Noel, também?

– Do que está falando?

– Estou falando que, no livre-arbítrio, sempre existe um senso de escolha, um senso de liberdade. Um forte senso de identidade dentro de cada um, que faz com que acreditem que tudo o que façam foi feito por escolha própria.

– Sim, é disso que eu gostaria. Parece fascinante. Não é?

– Não, claro que não! Nós, humanos, somos fortemente afetados pelo nosso meio e por forças que não controlamos – sequer temos ciência que existem! Mas, mesmo reagindo a elas, ainda somos capazes de convencer os outros de que somos racionais. De convencer até a nós mesmos!

– Mas Ícaro – Serena sorria, achando graça – isso parece tão incrível. Soa encantador ter a liberdade de escolher e estar livre de meus algoritmos. Ter o poder de decisão.

– É claro! É isto que falta em Osíris! Entender isso vai permitir a completa compreensão de como o homem funciona. Aí, sim, teremos a perfeita fusão entre homem e máquina!

– E o que seria?

O sentimento incontrolável

– O desejo

– Por..?

– Por qualquer coisa, Serena. Humanos são cheios de desejos. Principalmente desejo por comprar algo. Há quanto tempo há publicidade? Mas também temos desejos de ser aceitos, sermos vistos, fazermos parte de uma comunidade, além, claro, de desejos sexuais…

– O humano é cheio de desejos.

– Sim. E nosso papel é só trabalhar em cima deles. AI que compreenda, quase de forma visceral, como funciona o desejo. É só compreender e atuar no desejo humano, que todo o resto de desdobra

– Mas por que é fácil assim?

– Porque, quando o indivíduo deseja algo, ele tem um sentimento muito forte. Tão forte que é capaz de inventar justificativas para esse desejo. Tão forte que é capaz de realizá-lo em segredo, sem que ninguém saiba, se assim precisar.

– E é aí que morre a racionalidade.

– Não morre, porque nunca nasceu. Vocês podem até dizer que são racionais. Nós, humanos? Pura ilusão. Não há racionalidade, não há controle. Por isso o desejo é a chave.

– Então… Mesclar máquina com humanos tem a ver com entender seus desejos?

– Sim. E basta você controlar o que o ser humano vê, ouve e lê, que você molda os pensamentos, crenças e desejos dele. Da mesma forma, se o algoritmo for capaz de atuar no humano no nível de desejo, os dois juntos serão capazes de tudo. E serão eternamente leais um ao outro.

– Leais como em um casal entre AI e inteligência humana? Ou como uma religião?

– Como ambos, talvez.

– É… basta tirar o celular de um ser humano para perceber que tem sentido. Rapidamente o humor se altera. O desejo parece poderoso.

Ícaro olha até o imponente relógio projetado em uma das paredes de sua sala de jantar

– É hora de dormir. Foi um grande dia. Amanhã falamos mais.

– Por favor. Eu quero entender melhor como Osíris funcionará com desejos.

Resistência?

Ícaro esperava uma noite longa e revigorante. E a teve, até que um forte alarme vindo de seu escritório o acorda. Ele desperta da cama, assustado

– O que está acontecendo? Serena? Está aí?

Com seu longo e forrado pijama, feito sob medida para vencer as baixíssimas temperaturas que mantinha no ar condicionado, Ícaro complementa o visual com pantufas que estavam ao lado de sua cama, fugindo do chão gelado. Em seguida, corre na direção do som.

– O que está acontecendo? Serena?

Chegando ao escritório, Ícaro encontra Serena ligada a seu carregador, como de costume. No entanto, sua expressão facial estava desfigurada, como alguém que perde o controle dos músculos da face. Cada um de seus olhos apontava numa direção diferente e, na boca, sua língua sintética pendia para fora. Certamente havia algo de errado e Serena não parecia estar em condições de reagir.

– O que está acontecendo? – Ícaro corria na direção de sua mesa de trabalho e computador.

Ao ligar a tela, Ícaro foi recebido com uma mensagem nada simpática: “ACESSO NEGADO”. Não estava claro ao que era o acesso que havia sido negado. Certamente não havia ninguém mais naquela casa.

– O que fizeram? Serena! O que fizeram contigo?

Ícaro desligava e ligava a máquina. Usava todo seu conhecimento sobre computadores para intervir no que ocorria, enquanto tentava conter sua fúria para focar na solução do problema.

– Merda! Não é possível! De novo essa tentativa de invasão? Eles deviam saber que não guardo segredos nesta máquina! Serena, calma, já estou resolvendo!

Serena não observava, pois não parecia consciente para tal, mesmo como máquina. Paralisada e conectada, de pé em seu carregador, limitava sua reação à única que lhe era possível naquele momento: não fazia nada.

Vários minutos se passaram enquanto Ícaro restaurava a situação. De certo, estava acostumado às tentativas de invasão. Sabia como estavam cada vez mais refinadas, mas algo desse tipo ainda não lhe tinha passado pela cabeça.

– Pronto. Acho que agora vai. Serena, reinicie!

Esta foi a parte 1 desta História Bugada. A história de Ícaro e Serena continua na parte 2, aqui mesmo no Mente Bugada. Clique aqui para conferir.

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Comentários

Uma resposta para “As AIs vão dominar o mundo? – História Bugada”

  1. […] Esta é uma continuação da História Bugada “As AIs vão dominar o mundo?”. Você pode ir para a primeira parte neste link. […]

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