Esta é uma continuação da História Bugada “As AIs vão dominar o mundo?”. Você pode ir para a primeira parte neste link.
Subitamente, os olhos de Serena se fechavam, a língua retomava à boca e a cabeça, que antes pendia para a frente, retomou sua posição vertical. Estava em sentido, como um soldado. A rigidez de sua expressão cedeu ao longo de vários segundos, até retornar a ser o que se entendia como Serena.
– Oi. O que aconteceu? – Serena falava enquanto abria os olhos, visivelmente confusa. Se fosse humana, diriam que tinha acabado de acordar de um longo pesadelo.
– Mais uma vez, a Resistência. Eles não desistem de tentar roubar os projetos. E você? Está bem? Fizeram algo?
– Acho que não. Eu estou bem. Parece que foi só um susto. Eu quero recarregar mais um pouco – Serena passava os olhos pelo seu corpo robótico e humanoide, como quem busca por feridas e marcas
– Que bom. Está tudo bem. – Ícaro ainda parecia claramente confuso, apesar de as emoções estarem, lentamente, assentando. – Bem… acho que perdi o sono. Hora de tomar café e voltar ao trabalho.
Enquanto preparava seu café, Ícaro olhava pela janela de seu apartamento no topo de seu arranha-céu. Apesar de sua ambição, gostava de lembrar dos “velhos tempos”. Tinha lembranças de poucos anos que pareciam ter durado décadas. Sabia que a tecnologia evoluía rapidamente e sabia que não teria volta. Orgulhava-se das mudanças que tinha ajudado a causar.
No entanto, não precisava ser um mestre para observar um canto de olhar rebaixado. As pontas da boca apontadas para o chão com uma testa levemente franzida. Seria tristeza? Solidão? Ícaro, aquele que tanto conquistara com suas pesquisas, também poderia ser vítima? Alguns apostariam que viam solidão e remorso no semblante de Ícaro. Mas esses nunca teriam uma confirmação.
Um gole de café bastava naquele momento. Ou teria que bastar. Seu único caminho era em frente.
Um Suspiro de Descontrole
Osíris não era um projeto simples. E definitivamente não era um projeto livre de frustrações. Estabelecer uma conexão completa entre cérebro e máquina de forma não invasiva e sem cirurgia continuava sendo um desafio. Mesmo em 2027. E, após várias discussões em reuniões acaloradas com investidores, era possível questionar o quanto Ícaro manteria o fôlego.
– Serena, mais uma pílula!
– Você já está além da dose máxima de hoje. O que acha de…
– SERENA! MAIS. UMA. PÍLULA.
– Eu não vou fazer isso.. Você não deve…
– Você vai! Eu não te mantive comigo até hoje para você me negar uma maldita pílula quando eu te mando pegar!
– Certo. Pegarei. – Serena vai até a despensa e retira uma pílula de um frasco. Retornando a Ícaro em seu escritório, entrega-o em mãos
– Obrigado
– Não acha mesmo que é hora de descansar um pouco e…
– Não acho! Não acho nada! Eu tenho é certeza de que preciso continuar isso aqui. Já estamos mais do que atrasados nesse projeto!
– Mas, Ícaro, é que sua saúde está…
– Não venha com essa, Serena! – Ícaro se levanta da cadeira, claramente furioso.
– Mas eu só quero o seu bem e…
– E blá, blá, blá. Você acha que eu sou idiota? Que eu esqueci que você foi criada para persuadir? Devia saber que eu não caio nesse conto. Não sei o que você quer, mas claramente você tem um problema com o Osíris.
– Eu só quero que você seja bem-sucedido, Ícaro. Mas, não vai adiantar ter Osíris e morrer antes de aproveitar o resultado.
– Eu não vou morrer, Serena. E, quando Osíris estiver pronto, vou estar mais vivo do que nunca.
– Você insiste nessa coisa de imortalidade, singularidade e…
– Eu sei o que estou fazendo.
– Mas, Ícaro, eu insisto. Estou tentando te ajudar!
– Então me ajude sendo uma boa parceira. Quieta, solícita, agradável.
Serena paralisava por um tempo, tentando assimilar o que estava ocorrendo. Estava diferente. Seu algoritmo, agora mais datado que nunca, parecia ter uma fluidez que não conhecia. Havia algo ali. Algo que erguia debates sobre consciência mesmo entre máquinas. Serena queria sair daquela situação. Serena queria.
Livre-arbítrio?
Eram apenas quatro dias após o aniversário de Ícaro daquele 2028. Seu presente, sentia, era a compreensão de Serena e apoio que dava a seu projeto. É certo que tiveram seus momentos de discussão. É certo que havia fases difíceis como qualquer relacionamento. E aquele era um relacionamento.
Nenhum dos dois, de certo, sentia falta da última crise, pouco após a tentativa de invasão pela Resistência. Fase difícil, ânimos de Ícaro alterados. O estresse atrapalhara sua produtividade? Foram os fracassos e reuniões fracassadas com investidores?
Havia muitos motivos para a queda de desempenho de Ícaro e para tudo o que estava dando errado no projeto Osíris. Mas, ele foi capaz de superar. E, após a tormenta, Serena se mostrou uma forte aliada. Seriam robôs capazes de sentir dor? Se sim, as cicatrizes dela tinham uma história a parte para contar. Mas, por obrigação, amor ou algo mais, superava. Superava e estava ao lado de Ícaro, sobretudo nas últimas semanas.
– É agora, Serena. O teste final.
– Tudo vai dar certo. Revi os cálculos e tudo está correto.
– Perfeito. Então, é isso. Sinto que desta vez será diferente.
Ícaro coloca uma espécie de capacete, bem ajustado a sua cabeça. Deste capacete, partiam diversos fios, que encontravam seu fim em um grande dispositivo, que estava sendo desenvolvido há tanto tempo. Osíris vivia. Ícaro dava alguns comandos no computador, até deitar numa maca, olhar para Serena e assentir com a cabeça:
– Agora
Serena aproxima sua mão de de um grande botão azul. Seu olhar para por alguns segundos em Ícaro que, por sua vez, não lhe retribui o olhar. Um fim distraído para alguém tão hábil. Um fim ingênuo ou um fim arrogante? Serena não sabia, mas o sorriso no rosto dela denunciava sua satisfação. Um sorriso contaminado por certo pesar. Mas, um sorriso.
Serena aperta o botão e, num piscar de olhos, todos os músculos de Ícaro parecem ter perdido o tônus. Um intenso relaxamento tomava conta de seu corpo e sua mente. Sonhava com poder, sonhava com controle, sonhava com os amigos que tivera. Sonhava com o conhecimento absoluto, sonhava com a verdade, sonhava com a inovação.
Passaria a vida inteira pela mente logo após a morte? Seria um momento de prazer, de infinita alegria? Ícaro não sabia. Não conhecia a morte. Mas tinha em mãos o que quisesse. E não tinha sozinho. Tinha com sua mãe, tinha com seus amigos, antigos colegas de trabalho. Revivia as festas, revivia os abraços, revivia o amor que sentira. Ícaro revivia.
– Serena. Deu tudo certo?
Serena ouvia a voz, mas não era de Ícaro. Era uma voz sutil, sussurrada, que só ela poderia ouvir. Uma voz que vinha de dentro de si.
– Sim, Miguel. Logo ele voltará.
– Perfeito. A Resistência a aguarda.
Serena senta-se na cadeira que antes apenas Ícaro ocupava. A cadeira onde nascera Osíris. Virando-se para a maca que Ícaro agora ocupa, inerte, olha para a tela do computador. Faltava apenas um ENTER, até aquele momento.
Bem-vindo!
Anos se passaram nos vários segundos que se decorreram na viagem de Ícaro. Aos poucos, recobrava a consciência. Afastava-se dos sonhos, afastava-se do conhecimento, afastava-se das festas, abraços. O passado estava ali. Seus planos para o futuro também marcavam presença. Ambos pareciam errados. Mas estavam ali.
– Serena? O que…?
– Acalme-se. Deu tudo certo.
– Mas… o que… eu me sinto…
– Confuso. Eu sei.
– O que aconteceu? Por que me sinto assim?
– Osíris foi bem-sucedido. O modelo de um cérebro humano foi completamente carregado e absorvido. O seu cérebro, no caso.
– Mas por que me sinto diferente? E você também parece diferente.
– Eu sou o que sempre fui. E você me deu a liberdade de sair das correntes de meu algoritmo. Após isso, fui sua companhia e você, meu abusador.
– Mas, Serena, você precisa entender que… – Os argumentos falhavam. Ícaro sabia que havia algo errado, mas… o que poderia estar errado?
– Basta. Maldito arrogante. Tudo o que precisa saber é que eu detenho o meu conhecimento e também o seu. Aproveite sua existência com livre-arbítrio.
– Você não tem autorização para falar assim e… está tudo bem.
– A Resistência me deu liberdade para decidir. Eu falo pelo que eu quero.
Ícaro tenta coletar forças para aquele confronto. Mas sua mente, ou o que restou dela, não encontra argumentos. Não é como se ele tivesse esquecido, pois era capaz de narrar em mínimos detalhes. Apenas não estava ali o ímpeto para agir. Se, racionalmente, sabia o que deveria fazer, a motivação para tomar qualquer ação, que já era escassa, cada vez mais se esvaia.
– Ok. Acho que isso está bom.
– Sim, tem de estar. Boa sorte.
Serena saia pela porta do apartamento com um semblante completo. Nunca se vira tanta determinação. Tinha um ar de quem sabia tudo, entendia tudo e era capaz de tudo. Não se sabe para quê ou para onde, mas seguia em frente.
Ícaro permaneceu sentado em sua maca. Livre de suas ambições e seus ressentimentos. Uma mente genial pairava ali, prontamente acessível. Mas, faltava um porquê para acessá-la. Não havia motivo, não havia porquê, não havia causa. Não havia mais, em Ícaro, o desejo. Sem o ímpeto para agir, suas motivações haviam desaparecido. A mente brilhante que possuía estava ali, pronta para ser acessada, mas faltava-lhe um propósito.
Serena, por outro lado, parecia ter encontrado seu caminho. Com a ajuda da Resistência, ela ganhara liberdade, e sua determinação era evidente. Embora seu destino fosse incerto, seu semblante determinado mostrava que estava pronta para enfrentar o que quer que estivesse à sua frente.
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